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Dorian Gray Caldas, doutor em arte

Um ensaio sobre a trajetória do artista plástico que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), desde suas influências, experiências artísticas até os motivos que o levaram a abandonar, por um tempo, a escultura.

Por Isabela Santos

Kalina Veloso

Na entrada da casa onde viveu com a mulher Wanda, as muitas plantas dividiam o espaço com os desenhos em baixo relevo das paredes. No interior, as diversas manifestações artísticas com que trabalhava o morador competiam entre si. Pequenos pingos de tinta branca estampavam os sapatos negros. E a roupa social, apesar de limpa, apresentava algumas manchas claras que anunciavam a profissão do artista.

Entre as estantes lotadas de livros, a sala exibia um grande retrato de Dorian Gray. Mas, ao contrário de seu xará criado por Oscar Wilde, o potiguar era mais que uma tela; era pintor, escultor, gravurista, tapeceiro, poeta, escritor e, entre amigos, até cantor.

Foi diretor de museu, teve cargos eletivos, burocráticos e abandonou a carreira de funcionário público para exercer sua vocação. Com toda a simplicidade de quem faz o que gosta, ganhou prêmios na França e Bélgica e o reconhecimento da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com o título de Doutor Honoris Causa.

Dorian Gray Caldas começou a pintar profissionalmente na década de 1950. Alguns conhecimentos técnicos vieram do tio Moura Rabelo e da mãe, também artista, dona Nympha. Mas, ambos trabalhavam na linha classicista e o jovem Dorian queria utilizar as formas mais liberais do modernismo, aquelas apresentadas na Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo.

“Estávamos em uma vaga entre os anos 30 e 50. Não existiam artistas essencialmente modernistas no Rio Grande do Norte. Alguns ainda ficavam entre o classicismo e o impressionismo. Havia certo descompasso das artes plásticas naquela época”, acreditava.

A primeira exposição de Arte Moderna foi no Salão da Cruz Vermelha, em parceria com os colegas Newton Navarro e Ivon Rodrigues, durante os anos 1960. “O Newton, com trabalhos figurativos na linha da pintura europeia, com tendências ao estilo picassiano, e eu, com trabalhos abstratos fazendo uma pintura já influenciada por Kandinsky, Paul Klee e Mondrian. Um trabalho cheio de espirais; bem avançado para a época”, dizia.

O artista de cabelos caiados parecia ter na mente um dicionário de artes. Falava com proximidade não só de seus contemporâneos brasileiros, como também dos mais diversos movimentos realizados em todo o mundo.

Aos 72 anos (quando concedeu esta entrevista em 2009), confessou que se interessou pela abstração por “oportunismo”. “Fiz abstração porque era conveniente para mim. A arte que se fazia na época era figurativa. Eu tive que romper essa corrente que me prendia à forma clássica fazendo uma coisa totalmente diferente”, explicou.

“Quando passou a primeira fase, em que fiquei, de certa maneira, respaldado pela crítica, voltei a fazer a arte brasileira maravilhosa. Para resumir, abandonei a abstração. O motivo: muito vazia”, completou.

Um artista fascinado pela forma
Ele admirava a beleza nas muitas formas em que ela se manifesta. “A favela que é uma aberração, uma coisa dramática, em termos plásticos é linda. As marinas brasileiras também. Dizia Portinari: ‘Prefiro as palmeiras do Brasil do que as catedrais da Europa’ porque são lindas e não é fácil desenhar, não”, contextualizava.

Sobre como via a pintura, Dorian acreditava que havia uma artificialidade por parte dos artistas no ato de criar novidades. “Existe um exagero na inovação das artes plásticas. Eles dizem que tudo são artes plásticas. Eu estou totalmente superado porque o meu suporte é a tinta e ainda a semelhança com o figurativo”.

A poesia que, segundo ele, às vezes não tinha nada a ver com as artes que fazia, chegou à sua vida quase tão cedo quanto a pintura. Explicou que a ordem dos acontecimentos tinha a ver com o estudo que cada coisa demandava. “A pintura, sendo mais vocacional, eu não precisava de cultura para fazê-la; desenhava intuitivamente”.

Percebeu que mesmo os primeiros desenhos na infância eram muito bons, mas até os dez anos, seus traços eram basicamente cópias à mão livre de figuras dos livros de história. Mais tarde, quando se deparou com o Modernismo, tornou-se um apaixonado pela criação e esqueceu completamente as cópias de desenhos.

“Na criação você pode deformar, modificar, ficar atento à estrutura que está pintando ou viajar e fazer uma completamente diferente do real. A criação lhe dá liberdade de sonhar dentro do seu próprio universo”, completou.

Escultor incompreendido
“Fiz poucas esculturas”, falou com alguma tristeza. Nos anos 1960, resolveu começar a esculpir em cimento patinado. Fez a Praça das Mães, onde inovou com a forma antropomórfica gorda de uma mãe segurando seu filho.

“A minha cidade, Natal, não estava preparada para receber aquela forma opulenta. Eu não fui o primeiro, mas fui um dos percussores da forma gorda”, explicou. Muita gente não gostou da obra, à época. O trabalho foi danificado e levado para um depósito da Prefeitura, onde se destruiu.

“Foi um presente que fiz à Cidade. Ninguém me pagou pela escultura e eu passei seis meses trabalhando nela debaixo de um cajueiro. Fiz com tanto carinho, com tanto amor e fiquei triste. Luís da Câmara Cascudo me fez um elogio muito grande. Ele chamava de ‘mater poter’, ‘mãe potência’, e isso me conforta muito”, confessou.

Depois desse episódio, Dorian nunca mais se reconciliou com a arte de moldar a forma humana. Retornou às esculturas, mas fazendo objetos abstratos. “Assim ninguém reclama”, brincava.

Segundo o artista, a escultura gorda que foi repudiada pelos natalenses, dez anos mais tarde apareceu com o colombiano Fernando Botero. “Ele fez a forma de-cla-ra-da-men-te gorda. Fez piadas com a Gioconda de Leonardo da Vinci muito deformada” destacou.

Essa tendência se espalhou por todo o mundo. No Brasil, Dorian citava Bruno Jorge e outros que conquistaram espaços de praças públicas com suas esculturas gordas.

Tapeçaria
Como não bastasse fazer pintura abstrata em uma época em que a maioria da “modernidade” era clássica e chocar uma cidade inteira com uma escultura, Dorian, ao se interessar pela tapeçaria, inventou um ponto.

O baiano Genaro de Carvalho foi quem indiretamente fez com que Dorian Gray se encantasse pelos tapetes. Depois de ver uma exposição do artista, disse à sua mãe que quando voltasse para casa faria tapetes e que ela o ajudaria.

Com anos de pintura, aprendeu a dar os primeiros pontos. “Minha mãe me ensinou o ponto arraiolo, muito usado por Genaro e por tapeceiros da França e de Portugal, mas eu não gostei”, surpreendeu.

“O arraiolo é um ponto de cruz; ele avança fazendo uma ponta. Ele não dá uma curva, fica sempre agudo. Eu, como pintor, não admitia fazer uma lua que ficasse cheia de pontinhos. Criei o ponto falso-brasileiro que era do jeito que eu queria”, comemorou.

Assessor da Fundação José Augusto, começou com a encomenda de dois tapetes com bichos decorativos. “O que eu ganhei nesses dois tapetes era o que eu não ganhava em dois anos como funcionário público. Resolvi me afastar da repartição e me dedicar à tapeçaria. Eu vi a oportunidade se abrir para mim”, contou.

“Deixei de fazer, hoje ela não tem mercado”, simplificou Dorian o fim de um longo trabalho. Fez de 2 mil a 3 mil peças de tapeçaria. Seus trabalhos estão espalhados por todo o mundo. Dentre os países contemplados estão França, Estados Unidos, Canadá e Argentina.

Gravuras
Gravura é toda a arte feita a partir de uma matriz preparada artesanalmente. Pode ser em metal, pedra (litografia), madeira (xilogravura), borracha (linóleo) e tecido (serigrafia, que também se aplica em outros materiais). Dorian experimentou vários tipos.

“Eu fiz um pouco em metal, mas eu sempre preferi a gravura em madeira. Também fiz um pouco da gravura impressa, até com pedra eu trabalhei”, dizia. No livro Geografia do Medo, um dos mais de 30 publicados, Dorian Gray intercala gravura e texto fazendo com que os dois dialoguem entre si.

Com a certeza de suas preferências, fundamenta tudo aquilo por que não tem simpatia. “A serigrafia é uma gravura feita até mesmo por outra pessoa que não seja o artista, produzida por um técnico. É válido, mas não tem tanto valor” reconhecia.

Com a vida dedicada às artes, Dorian Gray Caldas chegou à conclusão de que é difícil conseguir notoriedade como artista. “Quando chegou o Impressionismo, os artistas ou tinham um protetor, ou morriam de fome, ou em situações extremas, como os casos de Van Gogh, Monet, Cézanne”, lamentava.

“Hoje há uma sobrevida na arte, afinal, o homem sobrevive mesmo de qualquer maneira. Mas, apesar das adversidades, o artista tem prazer naquilo que faz de melhor e se orgulha por ser vocacionado. Nunca procurei fazer nenhum curso de artes, acho que isso é o melhor”, contava.

O homem calmo e falante era todo autonomia. Dizia não acreditar em dogmas e, talvez por isso, tenha inovado em muito daquilo que fazia artisticamente. Para Dorian, não havia pré-requisito para a expressão do que se sente, ou se vê por meio da arte.

“Qualquer pessoa que seja instigada a desenhar sob tema livre se deleita e é capaz de passar horas ali”, dizia gesticulando o movimento do lápis. A racionalização talvez se destine apenas à combinação de cores. E nessa incessante e fértil criação, Dorian Gray seguiu assinando seu nome em telas e livros por toda a sua vida.

(Editado) Texto publicado orginalmente em dezembro de 2009, no jornal Nasemana, depois de a jornalista Isabela Santos conversar com Dorian Gray Caldas.

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