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A água que nunca dorme

Ele seduz os seus admiradores a cada olhar, causa vertigem aos que se arriscam num mergulho no primeiro encontro e transforma a noção de cada um sobre o infinito. Assim é o mar .

Por Sérgio Faria

Canindé Soares

Menino nascido na serra — espiando pro sertão mais além — meu cordão umbilical foi ungido pelos riachos e açudes da minha terra. Tive a sorte de uma infância farta em bons invernos. Mas aí, numas férias em Natal, todos os meus parâmetros sobre o elemento água foram bruscamente alterados. Ver o mar a primeira vez, é vertiginoso. Muda nossa noção de horizontes e alarga a imaginação até onde o pensamento alcança. Pensava: depois daquela linha infinita, o mar deve inclinar como uma cachoeira, e a gente vê as praias da África!

Praia do Forte. Meu tio Chico me levou pra conhecer. Fez pegadinha pedindo pra que eu provasse o sabor. Como aquela água tão clara podia ser tão salgada? Depois, vi os arrecifes. E pensei:  são a última barricada montada pela terra pra não deixar-se engolir por inteiro pelo mar furioso.  Acostumado ao marulho preguiçoso da água serpenteando entre as pedras do riacho do Melão, aquele embate distorcia todo meu sentido de ritmos e sons aquáticos: as ondas quebrando, eram trovões marinhos, um tambor imenso se despedaçando em espuma líquida. Queria ver e ouvir de perto. Meu tio me levou agarrado ao pescoço, me sentindo muito menor do que era. Não tive medo, eu acho. Era mais uma excitação diante de algo nunca antes visto. Mas confesso: os espirros  d’água no rosto, me encantaram menos que os peixinhos coloridos alojados nas reentrâncias da “rocha” pontiaguda. Aquários! Dezenas deles. Peixes azuis, verde-amarelos, prateados, listrados em vários tons. (Depois disso, piabas, carás e traíras, perderam muito do encanto, esteticamente falando.)

Assim o mar foi incorporado à minha vida. Sem o alarde de quem viu algo extraordinário – o que de fato ele é. Porque gosto de buscar mais os detalhes que compõem o vasto tecido do mundo, seja na terra ou na água. Caminhando pela praia na maré baixa, vi nos desenhos sinuosos que as ondas esculpem na areia, o carimbo que imprime as nuvens de carneirinhos no céu. Ou seria o reflexo da própria areia no espelho azul do Divino? Tempos depois, o mar passou a servir de esconderijo pros meus olhos. Naqueles momentos de introspecção adolescente em que a gente precisa se desgarrar do ao redor que nos incomoda e reencontrar a paz nos barquinhos ondulando sobre as ondas ou no rastro de luz que a lua deixa sobre a água que nunca dorme...Precisava me sentir pequeno pra descobrir que não posso conter todas as respostas.

O mar — na sua grandeza lânguida — nos restitui a condição humana e nos religa ao mundo mágico, no tempo em que lenda e realidade eram uma coisa só . Não importa de onde você venha, a conexão é imediata. O genial escritor inglês J. R. R. Tolkien, autor da trilogia O Senhor dos Anéis, tem uma bela metáfora pra explicar essa paixão incontida, essa sensação de aconchego, que sentimos diante da visão de uma praia como Ponta Negra, Pipa ou de Zumbi, lá em Rio do Fogo.

Houve um tempo em que Ilúvatar, o Senhor Supremo, reuniu os seres mágicos — elfos das florestas e dos mares, gnomos, anões — e ordenou que cada grupo usasse todo o talento para compor a estrofe mais perfeita que pudessem. Ordem dada, todos se dedicaram à missão sem perguntar para quê. Na hierarquia fantástica criada por Tolkien, havia também os Ainur, seres tão poderosos que podiam se comunicar telepaticamente. E entre eles estava Melkor. Que secretamente ambicionava ser tão poderoso quanto Ilúvatar. O ardil encontrado por ele, foi semear a discórdia para desafinar a obra que o Mestre pedira. Convocados novamente, os seres ouviram do seu Senhor enfurecido, que estavam se desviando do caminho e que voltassem a compor com devoção. Melkor foi banido. Mas o mal já estava feito. Ilúvatar então descortinou o firmamento e todos viram um planeta azul, não tão belo quanto ele sonhara. Era a terra — a casa dos homens, a casa dos filhos Dele. Mas que poderia ser um lugar bem mais bonito...

E onde o mar entra nisso? Tolkien responde: de todas as estrofes da sinfonia, a única não corrompida pela maldade de Melkor foi a dos seres que habitam as águas. E o barulho das ondas do mar, que tanto nos encanta sempre, é o último som original que restou dessa grande música que criou nosso mundo.

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