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Artes do Cangaço: sob novas sentenças ou velhas armadilhas?

“Sertanejos, mire veja: o sertão é uma espera enorme” (João Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas)

Por Tatyana Mabel

Eduardo Alexandre

A Sentença 2017 Escultura em madeira 39x16

A segunda edição do Salão de Artes Dorian Gray tem como tema o cangaço e reunirá cerca de cento e cinquenta artistas que atenderam a chamada pública e, aproximadamente, duzentas e setenta obras. São números expressivos que permitirão: i. o acesso a uma cartografia das artes visuais no Estado do Rio Grande do Norte; ii. a identificação das regiões mais produtivas; iii. as escolas e estilos que mais carecterizam as artes locais; iv e a divulgação de obras que padecem do anonimato, em função da assimetria entre qualidade artística e políticas de fomento ao setor. Há, ainda, outro fator que responde pela importância do Salão: o encontro de diferentes gerações, em que artistas de renome ou pouco conhecidos dividem o olhar de quem busca fruir e se inquietar através das artes.

Para as obras de ambas as gerações, o público poderá lançar a pergunta: “como as artes desenham o cangaço?”. Mas, o tema pode ser uma cilada. Retoma ditos e ritos que constituem nosso imaginário há quase cem anos. O que dizer depois de tantos vaqueiros com os traços sinuosos de Newton Navarro e do olhar estrangulado do Lampião de Dorian Gray que ilustra o cartaz da exposição? Poderia até restar algo a ser dito, não fosse a perenidade de algumas cenas que fazem o cangaço ser antes mesmo de existir: como as rezas das curandeiras que hipnotizam os juízos dos meninos febris; ou a trouxa de roupa equilibrada no corpo faceiro das lavadeiras que, nuas, escorrem os filetes das águas do rio; ou o ranger da porta brigando com o redemoinho… São imagens ancestrais que nunca nos abandonaram e que o cangaço apenas personificou no herói, dando a cenografia, o figurino e o enredo de batalhas de que precisávamos, para, finalmente, caracterizarmos a materialidade da vida como invenção. Viramos um mito. O que as artes poderiam dizem além disso? Como as obras do Salão podem transborbar o déjà vu do cangaço na abordagem dos seus temas e estéticas? Essa é, no nosso entender, a pergunta – ardilosa – por onde as obras devem trafegar.

Na penúltima versão prévia à impressão do catálogo da exposição, que tivemos acesso para este ensaio, a narrativa artística é a de celebração do herói. O cangaço é, majoritariamente, narrado a partir de uma estética fálica. Ela está, principalmente, nas dezenas de retratos de Lampião como personagem absoluto da tela, de seu bando beligerante ou dos personagens anônimos do nosso cotidiano que traduzem o vigor do cangaço; na crueza da fauna e da flora sertanejas, como demonstração de invencibilidade;… Essa estética que conhecemos desde que “abrimos os olhos” está muito bem representada, principalmente, nas estatísticas da exposição: as artistas mulheres são menos da metade dos homens e, embora a quantidade per capita de suas obras sejam equivalentes, elas contribuem, apenas com menos da metade do que o Salão irá apresentar. São cerca de 98 homens artistas e 190 obras para apenas 40 mulheres artistas e somente 75 obras.

Em meio a esse paradigma falocêntrico que as artes estabelecem como intertextualidade com as narrativas hegemônicas do cangaço e do nordeste, por onde escapar? Como não ser alvejado pelas balas que cravejaram a “bunda redonda” e não fazer dessas “medalhas” as nossas chagas?

Um artista em particular pode nos ajudar nesta resposta. Em nosso entender, vem, especialmente de Santana, alguns movimentos de ruptura. Em Santana com sua obra “A sentença” (madeira esculpida, 2017) temos uma perspectiva única do herói comparada a todas as demais da exposição. Atado num cacto, joelhos semi flexionados, pés cruzados, semi suspensos, o herói tem seu veredito. Finalmente. Solitário, tem como companhia o crânio de um bovino. Um prenúncio. E a sentença é dada justamente pelo espectador que mira a obra frontalmente em posição superior. O mito está sob nosso juízo, aguardando sua condenação ou absolvição. Santana nos coloca como o segundo personagem. Somos surpreendidos pelo lugar que nos cabe nessa narrativa. Um lugar que sempre nos pertenceu, mas que ocupamos, muitas vezes, para recontar as mesmas histórias e versões. E agora? O que diremos? É isso o que nos requer a obra: inventar. Nada do que já foi dito parece caber no que nos pede, agora, “A sentença”.

É preciso vencer o herói para não ser uma narrativa já vencida por temas e estéticas já sabidos. Esta obra é, nesse sentido, uma sentença estendida para além do herói. Ela atinge o mito. Diferentemente das imagens das cabeças decepadas, que lavram a derrocada do herói e, paradoxalmente, enaltecem ainda mais suas histórias, o corpo como nos apresenta Santana é um estado de transição. Uma espécie de natimortidade. Cor seca, um elemento moldado da nossa vegetação, derretendo, em iminência de ser sugado pela quentura do chão de terra batida. Na necessidade de mudança paradigmática do mito, Santana recorre a uma virada conceitual na concepção do corpo do herói. Assim como Sade e Frida Kahlo, Santana imprimiu na sua obra um novo sentido político e estético ao corpo. Para Sade, o corpo é um decreto, não de leis imparciais, mas de desejos soberanos. Para Frida, o corpo é o lugar das memórias, costuradas com aços cirúrgicos e fios de bordados das nativas. Para Santana, este corpo é também um lugar político e de memórias, mas por outros caminhos. Político, porque do sentido da construção de novas diretrizes sócio-imagéticas para o mito; de memórias, porque arrasta os construtos coletivos, seus arquétipos e valores nessa construção estética. Esse corpo que em “A sentença” não é morte, nem é vida; nem é triunfo, nem é derrota. Esse corpo, finalmente, pode fraquejar. E, só por isso, essa sentença já é libertadora, mesmo que não condene, nem absolva o herói.

Esse corpo está vivo o suficiente para ser morto e morto o suficiente para ser vivo. A opção de Santana é a mesma de Antônio Canôva ao retratar o mito de Dedalus e Ícaro na escultura pertencente ao Museu Correr em Veneza (1777-1779). Ao invés de retratar a cena cérebre do voo, retratou o exato momento em que mestre e discípulo planejavam voar. Para onde ninguém atinava olhares. “A sentença” também nos lança, igualmente, para este lugar. Para a dobra: nem a dinâmica da batalha, nem triunfo ou derrota da guerra. “A sentença” é outro enredo para o qual ainda não havíamos posto os olhos e, agora, tem nosso julgo.

É exatamente a antítese para as narrativas hegemônicas do cangaço. Ela é o contrário das cabeças vivas dos retratos do herói que veremos na exposição. Ela é também o contrário das cabeças mortas dos corpos decepados amplamente divulgadas e que nos ajudaram a construir a estética fálica referente ao cangaço (Numa estética fálica, as cabeças só estão suficientemente mortas se abdicadas dos seus corpos masculinos, do seu falo).

Assim, “A sentença” nos exige sair da posição de espectador para a de narrador (Juiz), nos apresenta o herói protagonizando a passagem do mito do cangaço para sentidos novos, e nos traz uma estética para novos enredos do cangaço. “A sentença” é um corpo, uma história, um herói, uma narrativa, um mito, uma estética a ser celebrada, morta, e, ao mesmo tempo, amaparada para nascer.

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