Por Manoel Onofre Jr.
Desaparecidos Câmara Cascudo e Newton Navarro, quem poderia preencher a lacuna deixada por estas emblemáticas figuras? Não tenho dúvida ao afirmar: Dorian Gray Caldas.
Artista plástico – pintor, escultor, gravador, desenhista, tapeceiro, ceramista – e escritor – poeta, ensaísta, pesquisador, contista – Dorian Gray distingue-se, sobretudo, como pintor e poeta.
Ao lado de Navarro, ele a bem dizer fundou a arte moderna no Rio Grande do Norte. Sua trajetória artística confunde-se com a própria História da Arte Moderna em nossa terra.
Quando surgiu, por volta de 1950, fez parte, juntamente com Navarro e Ivon Rodrigues, do I Salão de Arte Moderna, exposição realizada num casarão, em pleno centro de Natal. Referindo-se a esse evento, de grande impacto na vida cultural natalense, disse o cronista Veríssimo de Melo em sua coluna de “A República”:
“Dorian é o mais moço de todos eles e nos parece o mais avançado para o abstracionismo. Olhando algumas de suas composições, e comparando-as com Portinari, temos a impressão que o famoso pintor, diante de Dorian, é o mais acadêmico dos artistas”.
Mestre Veríssimo entusiasmava-se com a intrepidez e a mensagem revolucionária do jovem artista, mas equivocou-se ao julgá-lo demasiado abstracionista. Na verdade, Dorian filiava-se, então, a um certo abstracionismo, porém com a sua marca pessoal, inovadora. Depois, já se firmando no cenário local, torna-se meio figurativo, na mesma linhagem de um Portinari, ao que me parece.
Por volta de 1967, o artista auto-definiu-se nos seguintes termos:
“As mesmas coisas que fazia há dez anos são as que faço hoje. O que mudou foi a técnica”.
E adiantou:
“Engajado na pintura expressionista não ortodoxa, adapto tudo aquilo que seja válido.” (Entrevista concedida ao autor destas linhas – “Tribuna do Norte”, Natal).
Em sua temática volta-se quase sempre para a sua terra e a sua gente. Bem disse a respeito o grande crítico Antônio Bento quando de uma de suas exposições no Rio de Janeiro:
“Paisagens campestres como nas cenas das praias natalenses e em composições diversas, Dorian Gray Caldas tenta fixar a atmosfera e o caráter de sua terra, através de formas e cores de incontestável sabor telúrico ou nativo. É por isto um pintor representativo da cultura plástica do Nordeste brasileiro”. (Apud Antônio Marques de Carvalho Jr., in “Artes Plásticas do Rio Grande do Norte” – Natal: UFRN/FUNPEC/SESC, 1989, pág. 115).
A riqueza plástica contida nas fachadas de velhos casarões; os engenhos em meio aos canaviais; a exuberância de folhagens, flores e frutos da terra; os motivos folclóricos – bumba-meu-boi, fandango, congos, pastoril, lendas, etc. – e, de modo especial, as marinhas – tudo isto constitui o universo temático de Dorian Gray.
Já houve quem comparasse as suas marinhas com as de Pancetti, o mais conhecido pintor brasileiro da modalidade. Pois, eu digo, como simples leigo, que prefiro as de Dorian. Envaideço-me de ter, nas paredes de minha casa, três das mais belas. Obras de pintor-poeta, parecendo, às vezes, transitar do figurativo para o abstrato, em lindas composições, essas marinhas revelam a alma encantadora das nossas praias.
Literatura: 50 anos de sonho e de sombra
No meu livro “Simplesmente Humanos”, procurei traçar um perfil de Dorian Gray, mas, depois de publicado, percebi que o retrato aí em esboço, realça o artista plástico em prejuízo de outras facetas não menos importantes do intelectual.
Suprindo, em parte, a omissão com referência ao escritor, publiquei no meu livro “Salvados – Livros e Autores Norte-rio-grandenses”, a nota que transcrevo a seguir:
Dorian Gray Caldas surgiu no panorama literário com “Os Instrumentos do Sonho” (Natal, 1961), dentro das propostas pós Geração 45. Este livro divide-se em duas partes bem delimitadas: a primeira, com grande unidade temática e formal, compõe-se dos poemas discursivos de exaltação à amada, sob o título “A Viagem”; a segunda, variada, multiface, preludia outras duas obras do autor: “Campo Memória” (Natal, 1966) – o sentimento telúrico revelado pela memória poética, o tempo da infância redescoberto – e “Os Signos e seu Ângulo de Pedra” (Natal, 1976), poemas vários, bem mais elaborados, embora, talvez, sem a espontaneidade dos anteriores.
Dorian Gray publicou, ainda, “Presença e Poesia” (Natal, 1964), “Poemas para Natal em Festa” (Natal, 1984) e “Cantar de Amigos” (1995), além de inúmeros álbuns de desenhos/gravuras & poemas.
Em todas estas obras, um traço essencial: o lirismo de fundas raízes emocionais, sempre renovado, posto acima de experimentalismos e modismos.
A nota em referência – vale salientar – é de 2002.
Já na casa dos 70 anos, o poeta continua a produzir, a criar, no mesmo padrão de qualidade e, como sempre, dinâmico. Da fase mais recente destaca-se o livro “Os Dias Lentos” (Natal, 1999), cujo título revela o homem maduro, para não dizer idoso, e sua peculiar cosmovisão. A linguagem, acentuadamente, metafórica, também sabe ser desataviada e clara, como nestes versos:
“Estou só como árvore morta, um rio seco com suas cicatrizes de sol. Não tenho palavras de amor para festejar-te, amor. Se abro os braços, é para salvar-me do naufrágio. Na minha solidão, queimam-se os astros”.
Esse tom reflexivo e confessional perpassa em quase tudo. “O Fruto Maduro”, título de um dos poemas, bem poderia denominar esta obra admirável.
Não devo encerrar estas notas sem, pelo menos, mencionar a importância de Dorian Gray Caldas como escritor e pesquisador, autor do dicionário “Artes Plásticas do Rio Grande do Norte” (Natal, 1989) e de outro criterioso trabalho de pesquisa – “Almino Afonso, O Poeta – Outros Depoimentos” (Natal, 1993), em que homenageia o patrono de sua cadeira na Academia Norte-rio-grandense de Letras. O dicionário tornou-se obra de consulta obrigatória e deverá ser reeditado, dentro em breve.
Se eu dispusesse de mais espaço e tempo, nesta oportunidade, diria, também, algo a respeito do contista bissexto, do articulista e do animador cultural, dentre outras facetas desse múltiplo e fecundo humanista.
Depois de escritas estas notas, faleceu Dorian Gray a 23 de janeiro de 2017.
Deixou mais um livro de poemas, Do Outro Lado da Sombra, espécie de antologia pessoal.