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Dorian Gray Caldas: O Retrato do Artista Potiguar

Pintor, escultor, ceramista, tapeceiro, desenhista, escritor. Conheça as muitas faces do menino tirado da literatura para se tornar um dos maiores artistas plásticos da história do Rio Grande do Norte.

Por Rafael Barbosa

Thalles S. Florêncio

O talento do menino franzino de 8 anos, que traçava na infância os seus primeiros rabiscos no chão de casa com carvão, ganhou o Brasil e atravessou as fronteiras do país para encantar os olhos de admiradores. Dorian Gray Caldas é, reconhecidamente, um dos maiores nomes que temos na Arte do Rio Grande do Norte. Dos desenhos que sujavam o piso encerado por Dona Nympha, sua mãe, ele abriu as asas e ganhou o mundo.

Nascido no dia 16 de fevereiro de 1930, Dorian cresceu em Natal envolto em um contexto artístico e era incentivado pelos pais e pelo tio, o pintor e retratista Moura Rabello. A Arte, ele levava até no nome, inspirado no romance filosófico do escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde, “O Retrato de Dorian Gray”. Na época, o livro fazia sucesso por aqui e um amigo de Seu Eloi, pai do recém-nascido, o sugeriu para o batismo.

O enredo se dá na Inglaterra e conta a história do jovem e belo Dorian, que teve seu rosto pintado em retrato pelo artista Basil Hallward. Mais que tela, o rapaz se torna uma inspiração para Basil. Por influência do Lorde Henry Wotton, amigo do pintor, o Dorian Gray entrega sua vida à beleza e ao deleite do prazer.

Do romance, o Dorian Gray natalense pegou para si a sensibilidade das belas-artes. Na adolescência, já reproduzia a face de personagens famosos, como os artistas do Rio Grande . Teve seu início artístico como retratista e seus desenhos pareciam mesmo fotografias, de tão fieis à realidade.

Nesse tempo, comprava longos rolos de papel de embrulho sobre os quais se debruçava para criar e riscar. Um traço mais acertado que o outro, surpreendendo a todos desde os primeiros trabalhos.

A leitura também sempre foi sua companheira. Assíduo frequentador da Biblioteca Câmara Cascudo, por mais de uma vez ficou trancado dentro do prédio. Dava a hora de fechar a biblioteca e Dorian, sem perceber o dia baixar, ficava mergulhado entre os livros. Mensalmente recebia, através de um amigo funcionário dos Correios, revistas francesas de Arte. Pelos exemplares, ficava por dentro do que estava acontecendo em outros países, movimentos artísticos e tendências.

Foi aí que o garoto Dorian Gray se apercebeu que a Arte não residia somente na forma. Apesar da impecável técnica, mudou de estilo por compreender que se tratava mais de emoção do que de qualquer outra coisa, conceito ao qual chegou também sob influência de Candido Portinari. Entregou-se à abstração naquela primeira fase, estilo que foi modificado com os anos.

Rodeado sempre de amigos – dentre os quais seguia junto desde muito moço com os poetas e escritores Sanderson Negreiros e Luís Carlos Guimarães – Dorian Gray Caldas foi membro de uma geração influenciada pela Semana de Arte Moderna, realizada em 1922, em São Paulo. Boêmio de carteirinha, apesar de dispensar a bebida, viveu a juventude nos Anos Dourados quando os jovens iniciaram seus movimentos de contestação direta.

Dorian Gray pagava as contas com o salário de professor de Desenho do Colégio Atheneu, mesmo depois de já realizar as primeiras exposições. Sua estreia para o grande público só foi acontecer em 1950, ocasião do 1º Salão de Arte Moderna de Natal. O evento foi organizado por Dorian, Newton Navarro e Ivon Rodrigues e tinha expostas obras dos três expoentes das artes plásticas potiguares.

Dali em diante, se profissionalizou o pintor Dorian Gray que, já na década de 50, era conhecido em Natal e seguiu com o trabalho de professor de desenho. Contam, as pessoas que viveram à época, que Dorian arrancava os suspiros das moças por onde passava. Sempre muito bem vestido, com roupas elegantes que o clima da Natal de outrora – mais arborizada e sem tantos edifícios – lhe permitia usar. Durante a mocidade, e até pouco antes de seu falecimento, nunca deixou de frequentar as rodas de intelectuais.

Quando não estava produzindo e nem envolvido com os eventos, Dorian gostava de ir ao cinema, onde assistia aos longas-metragens que naquela década de 1950 lançaram para o mundo Marlon Brando, James Dean, Grace Kelly, entre tantos outros atores e atrizes. Em Natal, o preferido era o Cine Rio Grande, em Petrópolis. E foi entre uma sessão e outra que Dorian se deparou com a mulher por quem largaria a fama de namorador para constituir família e com quem passaria o resto de seus dias.

No escurinho do cinema
Em meados da década de 1950, Dorian Gray Caldas continuava sua carreira de artista, expondo pela capital e aliando a atividade ao ofício de professor de desenho. Apesar de fazer pouco tempo desde que havia se apresentado pela primeira vez à sociedade como pintor, já tinha certo reconhecimento e muita gente sabia quem era o galante artista plástico do Salão de Arte Moderna. Mas Wanda Dione não.

Naquela tarde, resolveu ir com uma amiga até o Cine Rio Grande se distrair em um dos poucos atrativos que dispunha a pacata capital. Moça recatada comum daquela década, ela estudava em colégio de freira e quase nunca tinha permissão para sair de casa. Os pais estavam sempre por perto.

O que Wanda descobriria só mais tarde é que aquela sessão de cinema lhe renderia um amor para a vida inteira. Dona Wanda ainda lembra com clareza que o filme era de terror e que resolveu sentar atrás daquele rapaz que achara bonito. A amiga passou a sessão aos berros, com medo do que via na tela.

Ao fim do filme, Wanda saiu apressada. Dizia para a amiga que não queria falar com o rapaz, apesar de tê-lo achado bonito.

Foi só na Festa da Mocidade, ocorrida na praça que ficava no lugar em que hoje foi levantada a Catedral, que os dois começaram a namorar. O casal saía para se encontrar na igreja, sob a vigia do irmão de Wanda.

Dorian, esperto, dava cigarros ao cunhado, para que ele deixasse os dois a sós. O combinado era voltar ao fim da missa. Porém, antes, era preciso observar qual a roupa que o padre usava a cada noite, para dizer quando chegassem em casa, Wanda e o irmão. Era a prova que eles estariam juntos durante a cerimônia, já que era essa a mesma pergunta dos pais sempre que voltavam. Apesar de autorizar o namoro, o sogro de Dorian criava a rédeas curtas a sua filha.

Os anos se passaram e, no final dos anos 50, os dois se casaram. A Igreja Matriz se encheu de gente reunida até do lado de fora para ter a certeza de que o artista boêmio oficializaria o matrimônio. Quem duvidou quebrou a cara. Com o tempo vieram Dione e Adriano que cresceram em uma casa enfeitada de quadros e visitada por grandes nomes da Arte local e nacional. A Arte sempre foi a fonte de renda central da família Gray.

Artista multifacetado
Desde muito cedo, Dorian Gray já se aventurava também nas letras, escrevendo artigos para jornais e participando como um movimentador da cena cultural de Natal. O artista não se atinha à pintura e permeava diferentes áreas de manifestação artística. Certa vez, em passagem pela capital potiguar, o escritor e jornalista recifense Gilberto Freyre – autor do clássico “Casa Grande e Senzala” – teve a sua disposição painéis produzidos por Dorian que enfeitaram o lançamento de um livro. E assim fazia em diferentes eventos que aconteciam na cidade.

Nos anos de 1970, descobriu uma nova paixão: a tapeçaria. Chamava atenção a destreza com que riscava os tapetes. Esticava na parede da sala, traçava, rabiscava e pronto. Saía dali uma obra quase terminada que era revendida para o Brasil e até mesmo para fora. Depois do trabalho do artista era só bordar, trabalho que ficava com as várias costureiras que trabalhavam junto com Dorian. A elas, ele ditava as cores que cada uma das formas levaria. Já tinha tudo montado na cabeça.

O período em que atuou como tapeceiro foi o que lhe rendeu mais recursos financeiros. Dorian produzia muito e tinha muita mão de obra empregada dentro do seu ateliê na charmosa casa da rua Ana Nery, no bairro de Petrópolis, onde vivia com Wanda e os meninos.

O imóvel sempre foi uma grande festa. Quando não eram as costureiras que transitavam para lá e para cá, bordando os tapetes, havia amigos de Dorian que visitavam a família com frequência. Além deles, tinha quem viesse ao Rio Grande do Norte somente para comprar os tapetes. Gente até de fora do Brasil que queria adquirir uma peça de Dorian. Artistas como Moacyr Franco e até mesmo o escritor Jorge Amado estiveram por lá durante passagens por Natal.

Jorge Amado conheceu a praia de Búzios, no Litoral Sul, de onde Dorian Gray tirava a inspiração para pintar suas famosas marinas. O cenário de barcos ancorados em uma costa marítima foi usado diversas vezes pelo artista. Adriano Gray conta que o pai dizia pensar em Búzios quando pintava as telas. A família tinha uma casa por lá, onde costumava passar os momentos de descanso. A relação de Dorian com o mar estava além do trabalho, era vinculada à sua memória afetiva. A filha mais velha, Dione, lembra que o pai era apaixonado pela terra em que nasceu e era esse sentimento que procurava exprimir em seus quadros.

Os dois filhos nasceram e cresceram em meio à Arte. Dione aprendeu a ler em casa, com o pai, que usava o desenho para lhe ensinar as letras. O “V” era um pássaro voando, a letra “A” uma bonequinha com tranças e, assim, ludicamente, iam se formado as palavras.

Pai, marido, pintor, escultor, ceramista, tapeceiro, desenhista, escritor. As relações com os familiares sempre se misturaram entre Arte e fraternidade. Como trabalhava em casa, Dorian Gray tinha os filhos e a companheira Wanda como parte de seu processo produtivo. Ele nunca estava parado, sempre inventivo. Quando se dedicava aos tapetes, não deixava de pintar, bem como quando fazia esculturas ou escrevia um novo poema. Dorian era movido por novos desafios artísticos. Até já próximo da morte, planejava iniciar a produção de novos painéis. Aos 86 anos tinha um projeto novo todo dia.

Obra e Glória
Durante toda a sua carreira, Dorian Gray Caldas foi um dos artistas visuais mais ativos do Rio Grande do Norte. O reconhecimento à sua obra lhe rendeu muitas encomendas e convites para produção de peças para espaços públicos. Foram mais de 60 anos dedicados ao ofício.

As peças também lhe permitiram receber elogios de quem menos se esperava, até do presidente do Brasil, em pleno regime militar. Quando esteve em Natal, o general Ernesto Geisel se hospedou no Hotel Reis Magos, até então o maior da capital. Encontrou em sua acomodação um tapete que se lhe impunha como artigo de destaque do quarto.

Ao se deparar com a peça, o general mandou buscar em casa o homem que a havia produzido. Era Dorian Gray. O artista voltava da rua de chinelo e sem camisa, com um saco de pão na mão, quando viu a frente da residência onde morava tomada por soldados. Apesar do susto, o motivo do alvoroço era o encontro com o presidente. No hotel, foi recebido com todas as honrarias para ganhar os elogios do general Geisel.

Dentre os tantos trabalhos que realizou, houve ainda um imenso painel pintado para ficar exposto no Aeroporto Internacional Augusto Severo, terminal aéreo que hoje está desativado. As dimensões do quadro eram tão grandes que Dorian Gray precisou pintar na casa da filha, onde tinha mais espaço. Ele usava um andaime para conseguir alcançar os pontos mais altos. A tapeçaria o ajudara a realizar trabalhos dessa natureza, permitindo que ele imaginasse a composição completa do desenho, desenvolvesse parte a parte e, ao fim, tudo ficasse perfeitamente encaixado.

Na Praça das Mães, onde fica o antigo prédio da Ordem dos Advogados do Brasil, o painel que decora a parede principal também é obra de Dorian Gray.

O Presépio de Natal projetado por Oscar Niemeyer, em Candelária, e hoje entregue ao abandono, recebeu de Dorian Gray Caldas um grande mural de 2 metros de altura por 14 de comprimento. A pintura retrata o nascimento de Jesus Cristo.

Durante a carreira, Dorian Gray também manteve parceria com o dramaturgo, poeta, desenhista e pintor natalense Newton Navarro, a quem tinha muito respeito. Havia, relata a família de Dorian, certa rivalidade entre os dois. Ambos são tidos até hoje como os dois grandes nomes da Arte Plástica do Rio Grande do Norte, o que causava, à época, certa competição. A todo modo era uma disputa saudável, segundo conta Adriano Gray.

A dupla trabalhou junta em painéis bem elaborados, produzidos entre 1950 e 1970, que hoje ainda decoram as paredes de prédios públicos pela cidade, entre eles o Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte - IFRN Central.

O próprio Dorian afirmava que foram mais de 10.000 obras de Arte produzidas por ele ao longo dos anos, entre pinturas a óleo, gravuras, bicos-de-pena, desenhos, painéis, escultura, tapeçaria.

Entre todas, há uma que se distingue pelo valor sentimental. A Ceia Larga pintada em azul e verde ganha lugar de destaque na sala de Dona Wanda. A pintura também já foi cenário para boa parte das fotos feitas dentro do imóvel durante entrevistas concedidas por Dorian Gray. É o quadro preferido da matriarca, assim como também é o de Adriano e Dione. Quando concluiu a tela, Dorian não assinou. Ordem da esposa. Se assim fizesse, ele venderia a obra que já tinha sido tomada como membro da família.

Dorian cantor
Uma das habilidades não profissionalizadas do artista Dorian Gray foi o canto. Entre os amigos, soltava a voz, bem como gostava de fazê-lo em casa. Aliás, a música estava sempre presente na vida do Dorian, principalmente durante a atividade diária de pintura. Trabalhava ouvindo música.

Gostava das músicas do tempo do rádio, em uma lista que inclui Ângela Maria, Cauby Peixoto. Entre os mais modernos, ouvia Marisa Monte. Chegou a ir para um show da cantora em 1989, acompanhado do filho Adriano.

Orlando Silva sempre foi o predileto, a referência musical. Orlando e Dorian chegaram a se conhecer pessoalmente, graças à intervenção do amigo João Paiva que conhecia o cantor. Os agudos do Rei da Voz encantavam Dorian Gray e o inspiravam no compasso de seus pincéis.

A música preferida cantada por Orlando era “Por Ti”, canção de 1938. Esta foi também a última que Dorian escutou, reproduzida por Adriano Gray no celular da mãe dentro do hospital no último contato com o pai – em 23 de janeiro de 2017. Horas depois, os médicos anunciaram o falecimento, aos 86 anos, por causa de uma parada cardíaca.

A vida na Arte deu a Dorian Gray Caldas o título de Doutor Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 2008, uma cadeira na Academia Norte-rio-grandense de Letras (ANL), sociedade no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), além de prêmios importantes, como a Medalha de Ouro no Grand Prix da Bélgica (1997) e os diplomas nos 20º, 21º e 23º Salões Internacionais de Revin, na França (1992, 1993 e 1995).

No entanto, para a família, o traço que imortaliza o eterno desenhista é a sensibilidade que tinha para usar a Arte como instrumento de transmissão de sua humanidade. A figura humana superava a persona do artista. A história de Dorian Gray Caldas segue sendo contada por suas obras, por sua casa enfeitada de Arte e de lembranças que Dona Wanda, Dione e Adriano não deixam se perder.

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