O cheiro da carne de sol na cozinha, da chuva que molha a terra seca, das flores na procissão Sant’Ana. Quem os sente torna-se também filho do sertão.
Por Helder Macedo
Canindé Soares
A palavra seridoense refere-se a pessoas que nasceram ou habitam o Seridó, uma região localizada no sertão do Rio Grande do Norte e que é cortada pelo rio homônimo, cuja nascente fica na Paraíba. Dentro do território do Rio Grande do Norte, o Seridó talvez seja o lugar que melhor pode ser caracterizado a partir do que é e do que dele falam. Claro, nem sempre o Seridó existiu, pelo menos, da forma como o conhecemos hoje, fruto de discursos regionalistas que reforçam uma identificação de pessoas com a terra e com um modus vivendi próprio.
O historiador Muirakytan Macêdo nos ensina que o Seridó não é um a priori da natureza. Sua história e sua cultura foram sendo construídas ao longo do tempo, por meio de encontros e desencontros entre, pelo menos, três mundos distintos, que entraram em colisão a partir do século XVI: o dos índios Tarairiu, o dos conquistadores de origem ibérica e seus descendentes nascidos na América, além dos cativos vindos da África e seus filhos nascidos deste lado do Atlântico. Em sendo o Seridó uma civilização, como foi proposto pelo historiador José Augusto Bezerra de Medeiros, a sua constituição somente foi possível por meio da convivência e interação de corpos e almas desses mundos.
Há muitos Seridós. Um deles é aquele cuja história pode ser palmilhada observando-se o evolver de agrupamentos humanos em torno de capelas, próximas aos rios, onde fazendeiros criavam seus gados, cultivavam suas plantações e alimentavam suas almas. Assim nasceu o que hoje chamamos de Caicó, capital da região do Seridó: arraial em 1700; povoação em 1735; freguesia em 1748, dedicada à Gloriosa Senhora Sant’Ana e município em 1788, sediado na Vila Nova do Príncipe. Dessa municipalidade desmembraram-se outras células, originando novas comunidades – 23, ao todo, incluindo Caicó –, que constituem o Seridó historicamente construído, na acepção da geógrafa Ione Morais: Acari, Jardim do Seridó, Serra Negra do Norte, Currais Novos, Florânia, Parelhas, Jucurutu, Jardim de Piranhas, São João do Sabugi, Ouro Branco, Cruzeta, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá, São Vicente, São Fernando, Equador, Santana do Seridó, São José do Seridó, Timbaúba dos Batistas, Lagoa Nova, Ipueira e Tenente Laurentino Cruz.
Certas imagens evocam matizes de um Seridó em que misturam-se passado e presente, numa aventura de reconhecimento que beira o bairrismo. Impossível não lembrar de Caicó ao passar pela Avenida Seridó e ver o Arco de Nossa Senhora de Fátima e, ao fundo, a Catedral de Sant’Ana. O mesmo se pode dizer das dunas artificiais da Mina Brejuí e do Tungstênio Hotel, exemplar da arquitetura moderna potiguar, ambos situados em Currais Novos, além da Igreja do Rosário e do Museu do Sertanejo, localizados em Acari, tombados como Patrimônio Histórico Nacional pelo IPHAN. Três montes singularizam a paisagem seridoense: o do Galo, em Carnaúba dos Dantas, onde se cultua a Virgem das Vitórias; o das Graças, em Florânia, onde se venera a Santa Menina e Nossa Senhora das Graças; e o Pascoal, em São Fernando, onde há um cruzeiro votivo a São Sebastião. Gargalheiras, Boqueirão, Dourado, Itans e Passagem das Traíras, além de atuarem como importantes reservatórios d’água para o povo das cidades vizinhas, concentram, em seus derredores, a jaçanã, a garça, o socó, o mergulhão e a galinha d’água, avifauna que embeleza as cores dos dias mais cinzentos.
E, por mais paradoxal que possa parecer, se a quentura de Caicó é propalada aos quatro ventos, um Seridó frio se descortina do alto do maciço da Serra de Santana, com temperaturas mais amenas em cidades como Tenente Laurentino Cruz, Lagoa Nova e Cerro Corá, de onde, em alguns pináculos, se pode contemplar o Seridó das terras baixas.
Existe, também, um Seridó de se tocar, como aquele do barro utilizado para a feitura de tijolos que ergueram igrejas, templos e terreiros; da areia fina dos leitos dos rios, colhidas por homens e mulheres para arear suas vasilhas de alumínio em tempos idos; do tronco laminado da imburana, cujo lenho transforma-se, nas mãos de habilidosos entalhadores, em obras de arte; do caule espinhento do mulungu, cuja leve madeira, privada dos espinhos, converte-se em fantoches que mamulengueiros dão vida, por trás de suas tendas. É possível, mesmo, sentir o Seridó longe de casa, quando, em meio à estafante rotina da cidade grande, sentimos a malha de uma larga rede massagear nossas costas e embalar nossos desejos de tranquilidade. Ou, ainda, quando não resistimos a uma boa chuva e automaticamente deixamos que as torrentes canalizadas pelas biqueiras nos lavem o corpo e a alma – num desejo contínuo de que essa água, também, siga para o sertão.
Aliás, a vida do seridoense pulsa de acordo com a maior ou menor incidência da seca ou do inverno. Sentir o cheiro de chuva chegando conduz o sertanejo do Seridó a um estado de catarse, em que liberta-se da agonia de seus problemas do hoje e rememora seus tempos de infância, de fartura, de terra molhada, de um devir que, no íntimo do seu coração, espera que se cumpra, com ou sem a bênção de São José – tido, no imaginário popular, como o santo das chuvas. Embrenhar-se na caatinga do Seridó, igualmente, pode trazer à tona uma memória olfativa que revela a identificação da pessoa com suas origens, ao passo que inalamos a fragrância doce das flores do pereiro e do mofumbo ou o perfume pendendo para o acanelado da casca do cumaru. Nas casas dos sítios, todavia, os cheiros que marcam as etapas da vida de um seridoense podem variar do odor acre do estrume do curral nas vizinhanças, passando pelas sensações olfativas provocadas pelo feijão verde misturado com os pés de milho no roçado, indo até o aroma estimulante do café, que preenche o ambiente da cozinha no raiar do dia.
Uma mesa farta. Essa é outra das qualidades com a qual o seridoense celebra sua identificação consigo e com os outros, mesmo para aqueles menos recursados, pois faz parte do ser do Seridó não deixar uma visita sair de sua morada sem, antes, provar o que se cozinha no sertão. Grande parte da alimentação típica produzida e consumida no Seridó, no sítio e na cidade, é parte de um enxoval herdeiro do mundo da pecuária, em contato com os mundos nativo e africano: carne-de-sol, paçoca de pilão, queijo de manteiga, arroz de leite e galinha caipira. Acrescente-se, a estas iguarias, outras que adoçam o paladar dos seridoenses, como o chouriço, a espécie, o filhós, a raiva, a umbuzada e o arroz doce. Grande parte desses alimentos iremos encontrar, sobretudo, em ocasiões especiais durante o ano, como feriados do tempo cristão, bem como, nas festas de padroeiro, a exemplo das de Sant’Ana, que ocorrem, com grande incidência de pessoas, em Caicó e Currais Novos. Em Caicó, os festejos a Sant’Ana, realizados há mais de 250 anos, reforçam os laços identitários com a região, da qual é padroeira. Pelo fato de agregar um manancial de referências da cultura sertaneja (religiosidade, culinária, artesanato, literatura, por exemplo), a Festa de Sant’Ana de Caicó foi registrada, pelo IPHAN, como Patrimônio Cultural do Brasil.
Festa de padroeiro é ocasião para reencontros. Gente do sítio com a da rua, parentes que moram na capital (e mesmo em outros estados) e amigos de longas datas com aqueles que teimaram em não sair do interior, resistindo, inclusive, ao rigor das grandes estiagens. É ocasião, também, em que as ouças de parte dos moradores das cidades seridoenses são purificadas com sonoridades diferentes daquelas ouvidas no seu cotidiano: a das bandas de música, que, no trajeto que fazem de suas sedes até os templos católicos, infundem desejos, relembram paixões, decifram saudades e dedilham alegrias. Caicó, Jardim do Seridó, Acari, Carnaúba dos Dantas, São João do Sabugi e Cruzeta são lugares do Seridó lembrados pela sonoridade de suas bandas de música e mesmo de seus compositores, que cativam, com o carisma de dobrados, valsas, maxixes, choros, fantasias e peças sacras, a quem os ouve.
Há uma seridolência, como dizia o despoeta Moacy Cirne, em alguns dos aspectos que a leitura sensorial do Seridó, feita neste texto, evocou. Pensamos o sertão seridoense, chão encharcado de sangue indígena, pisoteado por cabeças de gado e semeado por famílias de diversas origens, a partir da vivência de nossos ancestrais, ritmada por valores, até certo ponto, ligados à tradição. Uma leitura parcial, frágil e circunscrita, que, certamente, não representa todos os seridoenses.