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O notável Eloy de Souza

Foi um homem à frente do seu tempo: defendeu a flora e a fauna sertanejas antes da ciência ambiental, as dunas de Natal, os costumes e tradições, sempre com os olhos para o futuro.

Por Vicente Serejo

Liquide essa bacharelice que preciso de ti no Rio Grande do Norte!
A frase é de Pedro Velho e está nas Memórias de Eloy de Souza.

É ele, o próprio Eloy, quem descreve a cena mais de um século depois no seu livro publicado só em 1975, pela Fundação José Augusto, lembrando seu primeiro encontro com o líder republicano. Ele conta:

­— Eu não conhecia o Dr. Pedro Velho nem sequer de vista. Mas do Recife acompanhei suas campanhas no Rio Grande do Norte pela Abolição e pela República com todo o meu entusiasmo juvenil.

O acadêmico de Direito Eloy de Souza não conhecia pessoalmente Dr. Pedro Velho, como todos chamavam o chefe republicano no Rio Grande do Norte. Mas ele lembrava, mesmo sendo um homem importante, e tinha guardado na memória os telegramas de ‘calorosa solidariedade política’ do jovem estudante que morava no Recife, mas com suas raízes antigas naquela Macaíba onde passara a infância, e onde as duas famílias tinham relações desde o Século XIX, na cidade que era, então, o mais importante centro comercial do Estado.

O encontro foi no Cais da Lingüeta, onde hoje é o monumento do Marco Zero, no Recife, e onde está plantada a coluna de Francisco Brennand. Ali, ao lado de outros alunos, Eloy foi receber o novo líder político que acabava de representar o Estado na primeira Constituinte Republicana.

Vaidoso pela distinção, Eloy registra que o Dr. Pedro Velho não deixou que se despedisse como os outros estudantes. Fez questão de convidar a acompanhá-lo até a casa de sua sogra, na Rua Visconde de Goiana, onde iniciou uma conversa amiga, à sombra dos sapotizeiros, e que só terminou às duas horas da tarde, depois de um longo almoço.

Ali, naquela tarde, nasciam o jornalista e o político Eloy de Souza.

Formado em Ciências Sociais e Jurídicas, turma de 1894, mas político e jornalista a vida inteira, teve em Pedro Velho seu único líder ao longo de sua vida pública. Uma admiração que se manteve nas palavras que proferiu à borda do túmulo, no enterro de Pedro Velho, e foram repetidas anos mais tarde no discurso de inauguração do seu mausoléu, e, ainda alguns anos depois, quando o escolheu para ser patrono da cadeira que ocupou na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Leu praticamente o mesmo discurso nos três instantes, reafirmando de forma inabalável e fixando numa frase sua coerência de ferro, forjada, então, há quase um século.

Eloy Castriciano de Souza nasceu no dia 4 de março de 1873, no Recife, e fechou os olhos para sempre a 7 de outubro de 1959, aos 86 anos. Era filho de Eloy Castriciano, comerciante e político, e Henriqueta Leopoldina Pedrosa de Souza. Era o mais velho e foi o mais longevo dos cinco irmãos: Henrique Castriciano de Souza, poeta, escritor e homem de idéias, fundador da Liga de Ensino, da Escola Doméstica e dos Escoteiros do Rio Grande do Norte; Irineu Leão Rodrigues de Souza que faleceu jovem, vítima da explosão de um lampião de iluminação doméstica; Auta de Souza, a poetisa mística que faleceu aos 25 anos; e João Câncio Rodrigues de Souza, o único a deixar filhos.

A melhor síntese da gênese da família Castriciano de Souza está no primeiro capítulo de ‘Vida Breve de Auta de Souza’, a biografia escrita por Câmara Cascudo publicada em 1961. É um livro-homenagem escrito para a poetisa mística, amiga de sua mãe, e que embalou nos braços tépidos aquele que seria seu biógrafo e o maior intelectual de sua terra.

A história dos Castriciano de Souza começa com o avô, Félix José de Souza, o Félix do Potengi Pequeno, vaqueiro de Francisco Pedro Bandeira de Melo, senhor de terras e de gados na ribeira do Potengi. É Cascudo quem escreve, abrindo o livro:

Apresento-lhes Félix José de Souza, Félix do Potengi Pequeno, município de São Gonçalo e depois de Macaíba, Rio Grande do Norte, vaqueiro de Francisco Pedro Bandeira de Melo, um Rei a Cavalo, com toda a ciência da equitação matuta e os segredos de amagotar e guiar o gado.

E acrescenta, no parágrafo seguinte:

Diziam que Félix do Potengi Pequeno tinha pauta com o cão porque touro não fugia da mão nem marruá desaparecia na serra. Trazia o lote unido e manso no domínio do aboio que se desenrolava no ar como uma fita melódica de sugestão magnética. No coice ou na guia da boiada ninguém o igualava.

Da pobre glória de Félix do Potengi Pequeno, o vaqueiro aboiador que Cascudo descreve como baixo, escuro, enxuto, ágil, gato do mato para saltar em cima de uma sela e correr no limpo e no fechado, como peixe revira na água, ficaram, como informa seu biógrafo ilustre, esses velhíssimos versos que vagam anônimos e alegres no sertão pastoril como se fossem seus:

Fui moço. Hoje sou velho. Morro quando Deus quiser. Tive dois gostos comigo: Cavalo bom e mulher!

O mundo de terras de Francisco Bandeira de Melo, informa ainda Cascudo, estirava-se na margem esquerda do Jundiaí, vila do Coité, mas a gadaria se espalhava em fazendas incontáveis de sua propriedade. Ali, a filha dele, Damiana Maria, engraçou-se e casou com Fabrício Gomes Pedroza, Fabrício Velho (1809-1872), paraibano com origem em Brejo da Areia, viúvo de Maria da Silva de Vasconcelos.

De tanto trabalhar, uma vez ou outra, para o genro rico e poderoso do seu patrão Francisco Bandeira de Melo, o Seu Fabrício dos Guarapes, Félix criou as boas raízes da estima e acabou casando com a menina Cosma, cria da família. Do casamento, nasceu no dia primeiro de dezembro de 1842, Dia de Santo Eloy, um menino-homem que por isso se chamou Eloy Castriciano de Souza, o velho, futuro pai do primogênito que herdaria seu nome e seria bacharel, jornalista, deputado federal e senador, único dos irmãos a nascer no Recife, aonde o pai instalou comércio próspero e fez fortuna.

Eloy e seus quatro irmãos ficam órfãos de mãe muito cedo, em julho de 1879, quando a tuberculose, a peste branca, ceifou a vida de Dona Henriqueta, no Engenho Jundiaí, aos 27 anos. Na missa de trigésimo dia os avós maternos - Francisco de Paula Rodrigues e Silvina, a Dindinha - assumem os cinco netos. Dois anos depois, extenuado de uma grande luta política, o pai também contrai tuberculose e falece em 1881, aos 38 anos.

Foi a Dindinha uma fada-madrinha para aqueles pequenos meninos sem pai e sem mãe levados para o Recife. Conduziu os netos para os estudos, internando Auta de Souza como aluna no Colégio São Vicente, das irmãs francesas, Eloy e Henrique alunos externos em bons colégios, e depois na Faculdade de Direito. Irineu morre aos 12 anos vítima de um incêndio e o mais jovem, João Câncio Rodrigues de Souza viveu 56 anos, no Recife, onde foi fiscal do consumo e deixou filhos, netos e bisnetos.

Ao fechar o texto de suas ‘Memórias’, Eloy não se nega a registrar a discriminação que sofreu ao longo das lutas na vida política. Mesmo consagrado como político e intelectual e sem nunca se deixar abater pela sua cor negra e deixa por escrito:

Os que não podem responder pensam injuriar-me, aludindo à minha cor. Saibam estes que a minha maior saudade e a minha admiração não são pelo meu avô branco e rico, mas pelo que era preto e pobre, porque foi deste que herdei a bondade dos fortes e a coragem estóica dos humildes.

As idéias
Em 1890, no dia 15 de novembro, menos de um ano depois de proclamada a República, Eloy faz sua estréia como orador e discursa - ‘ainda cascabulho’ - como conta nas ‘Memórias’, representando os estudantes naquele Recife de bacharéis valentes. Em 1894 estava formado em Ciências Sociais e Jurídicas pela Faculdade de Direito de Recife e Olinda. No mesmo ano, volta para Macaíba, então a verdadeira capital política do Rio Grande do Norte. Vestiu a toga de advogado e atuou no júri, foi delegado nomeado por Ferreira Chaves, primeiro governador eleito, em 1895. Disputou seu primeiro mandato de deputado federal, sob a liderança de Pedro Velho, alterando sua idade para provar ter 21 anos. Sempre reeleito, sua atuação foi brilhante, mesmo muito jovem.

Em 1906, chama a atenção da Câmara com um grave discurso denunciando a desgraça da seca contra a vida do sertanejo e a sobrevivência no sertão nordestino. É quando pronuncia a frase que ficaria famosa e que seria a epígrafe do seu primeiro livro, ‘Calvário das Secas’, lançado em 1938, e que influenciaria José Américo:

Pior do que caminhar quarenta anos no deserto é chegar à terra da promissão e ter saudade do deserto.

No ano seguinte, 1907, idealiza, redige e propõe no plenário da Câmara Federal a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas, IOCS, que mais tarde é transformado no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS. Existe até hoje.

Em 1909 pronuncia e depois publica sua conferência ‘Costumes Locais’, no salão do Palácio Potengi, uma visão pioneira da importância dos hábitos, costumes e tradições quando a etnografia ainda não era reconhecida como ciência, Câmara Cascudo tinha 11 anos de idade e não era folclorista.

Em 1910, por sugestão de Afrânio Peixoto, de quem se tornara amigo no Rio de Janeiro, viaja ao Egito para conhecer de perto a famosa Barragem de Assuã e a questão da salinização nos grandes reservatórios de água para consumo humano. Conheceu Alexandria, Jerusalém e Paris, e foi a Lausanne, visitar o irmão Henrique Castriciano, internado num sanatório em busca de curar os pulmões cavernosos, ameaçados de tuberculose.

Dedica seu mandato e as suas idéias aos desafios regionais e nacionais e por isso propõe à Câmara Federal, em agosto de 1911, um amplo programa federal de irrigação nos moldes que viu no Egito garantindo a produção do algodão irrigado. Publica ainda em 1916 um pequeno, valioso e pioneiro ensaio de natureza econômico-social – ‘A Irrigação na Economia Geral do Nordeste’. Em março de 1919 viaja ao Rio na companhia de Câmara Cascudo que seguia para continuar seus estudos de medicina, quando tem uma vitória nacional de sua luta contra os efeitos da seca: é aprovada a lei criando o Fundo de Irrigação que Eloy propusera com o nome de Caixa das Secas.

Eleito senador em 1927, logo renuncia ao mandato alegando questões de foro íntimo para voltar à condição de deputado federal, até a dissolução da Câmara Federal na Revolução de 30. É preso em julho de 1932 no quartel do Batalhão de Caçadores, ao lado de 17 companheiros, por determinação de Café Filho, então chefe de polícia. No ano seguinte, 1934, foi o relator da Lei 175 que regulamentou o Artigo 177 da Constituição Federal de 1934, sancionada em janeiro de 1936 por Getúlio Vargas, acatando seu parecer para uma nova lei contra a seca.

Eloy é eleito senador outra vez para o período de 1935 a 1942, mas o Congresso é fechado pelo Golpe de Estado que dissolveu o Poder Legislativo, encerrando sua carreira legislativa. Volta ao Estado, assume a direção da Imprensa Oficial, e participa dos atos de fundação da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras ao lado do irmão Henrique Castriciano.

Como estudioso da civilização da seca, e depois de - com o pseudônimo Jacinto Canela de Ferro - registrar a vida no sertão nas suas ‘Cartas Sertanejas’ apontadas pelo professor Francisco das Chagas Rocha como pioneiras no regionalismo literário, escreve e publica em A REPÚBLICA, e depois nas páginas da revista ‘Bando’, tendo à frente o escritor Manoel Rodrigues de Melo, o ensaio sobre ‘A Habitação no Rio Grande do Norte’, transcrito, informaria depois a própria ‘Bando’, na ‘Revista de Ciências Sociais de Washington’, volume II, número 13, em 1953.

Eloy ainda dirige a Caixa Econômica Federal no Rio Grande do Norte e escreve um ensaio sobre ‘A Política Financeira e as Caixas Econômicas’, publicado em 1951.

Logo depois de sua morte, em 7 de outubro de 1959, recebe da Assembleia Legislativa uma grande homenagem: a criação do município de Eloy de Souza nomeando as terras da vila de Caiada de Baixo, desmembradas do município de Serra Caiada. O governador Aluízio Alves cria em 1963 a Fundação José Augusto e, na sua estrutura, a Faculdade de Jornalismo Eloy de Souza que desaparece quando da absorção e federalização pela UFRN. Em 1975, são publicadas suas ‘Memórias’, até então inéditas, e republicadas em 2008 pelo Senado Federal em coedição com a Fundação Pró-Memória de Macaíba. Com revisão, organização, cronologia e índice onomástico da jornalista Rejane Cardoso.

Suas idéias até hoje são temas de estudos permanentes, de dissertação de mestrado e de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Eloy de Souza foi um homem à frente do seu tempo. Defendeu a flora e a fauna sertanejas muito antes da ciência ambiental. Os morros e dunas de Natal, a irrigação, açudagem, barragens, costumes e tradições, sempre com os olhos para o futuro. Por isso suas idéias não envelhecem. Mas, ao longo de toda sua vida, teve sempre o mesmo líder, Pedro Velho. É tanto que na saudação ao seu patrono na posse como imortal da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, encerrou com a mesma frase que dissera diante do seu corpo sem vida, e, anos depois, na inauguração do seu mausoléu, no Cemitério do Alecrim, e do monumento no square da Junqueira Aires, onde hoje é a Praça das Mães, depois removido para a praça que hoje tem seu nome:

­— Descansa em paz Lidador!

Natal, outubro de 2015, nos 142 anos de Eloy Castriciano de Souza.

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