Ou de como o Lobo Mau foi feliz, finalmente.
Por Paulo Araújo
Canindé Soares
Num fim de tarde de sábado na velha Ribeira, bairro boêmio e decadente de Natal, saiu Chapeuzinho Vermelho muito feliz do sobrado onde morava com sua mãe, na Rua Doutor Barata, e caminhou até o cais da Tavares de Lyra, onde pegaria a balsa Albacora para atrevessar o rio Potengi. Sua missão naquela tarde era entregar uma bacia de gingas com tapiocas cuidadosamente preparadas pela mãe para serem vendidas pela Avó na praia da Redinha.
Não imaginando o perigo que iria correr durante a travessia, Chapeuzinho caminhou saltitante até a balsa. Lá dentro, acomodou os quitutes no meio das pernas e aproveitou o tempo livre que teria na próxima meia hora para se debruçar sobre o parapeito do barco e admirar os raios de sol que desciam do céu naquele momento. Era um espetáculo inesquecível: os fios dourados rasgavam as nuvens brancas do céu azul e tocavam a água formando uma espécie de chão flutuante de ouro. Lindo de morrer, pensava Chapeuzinho.
Em meio a essa verdadeira película de cinema surgiu uma canoa ao lado da balsa. Nela estava Lobo Mau, um coroa charmoso de meia idade que usava calças justas, exibia correntes douradas em meio a profusão de pêlos no peito e era ritmista de uma escola de samba do bairro das Rocas, vizinho à Ribeira. Desempregado, estava sempre de olho no vai e vem da balsa.
Ao ver de longe Chapeuzinho Vermelho acomodada na balsa, linda e vaporosa num vestidinho de chita amarela, o matreiro acionou o faro aguçado e sorriu. A experiência de anos e anos fazendo aquela travessia dava-lhe a certeza de que uma bacia de gingas com tapiocas fresquinhas esperava por sua bocarra dentro do barco. O ataque seria inevitável. Irresistível. Não costumava haver caçadores naquelas águas.
Chapeuzinho também viu o Lobo Mau e, sem controle, estremeceu. Lembrou das histórias que sua mãe contava e apertou a bacia com as coxas, com medo. As duas embarcações se aproximaram e o Lobo, muito rápido e experiente, subiu na balsa sem que ninguém percebesse. Lépido, se escondeu atrás de umas caixas de isopor cheias de camarão. Somente Chapeuzinho Vermelho sabia que o Lobo Mau estava ali por perto.
O som vindo do toca-fita do Albacora abafava as conversas corriqueiras dos passageiros. O bate-bate das caixas de mercadorias que sacolejavam ao sabor das ondas do rio provocava um barulho que não alterava a rotina da travessia. Para trás, Natal ia ficando cada vez mais longe...
Faltando poucos metros para a embarcação atracar na Redinha, Lobo Mau pulou na águas. Ninguém notou a manobra, distraídos pelo tec-tec do motor. Em poucos minutos, ele chegou à Rua do Mercado onde morava a Avó de Chapeuzinho Vermelho.
A linda mocinha foi a última a deixar a balsa, descendo lentamente os degraus da escada de madeira carcomida pelo tempo. Seu rebolado avassalador ao cruzar a passarela que desemboca na areia chamou a atenção dos pescadores. Algo havia acontecido. Um dos moleques que sempre estão por ali em busca de uns trocados ajudou Chapeuzinho a levar a bacia de gingas com tapiocas até a casa da Vovó.
Chegando lá, bateu na porta e, sem esperar resposta, foi entrando. Do quarto, era possível ouvir a mistura de duas vozes. Das caixas de som da velha vitrola cor de laranja, Altemar Dutra perguntava, entre chiados da agulha no LP, Que Queres Tu de Mim? Do chuveiro, a voz da Avó de Chapeuzinho acompanhava os trinados do cantor…
— Lá rá rá rá rá lá….Lá rá rá rá lá rá…Lá rá rá rá…
Ao se aproximar da cama, Chapeuzinho viu que os lençois estavam desarrumados. Coisa rara naquela casa, pois a Avó era sempre muito cuidadosa. Curiosa, a mocinha foi até o banheiro e, dessa vez sem bater na porta, abriu e tomou um susto enorme com o que viu.
— Que olhos tão grandes são esses, Vovó?
— Ah, Chapeuzinho, foram coisas lindas que acabei de ver... Eles ficaram assim…
— E esse nariz tão vermelho, por quê?
— Foi um perfume muito bom que acabei de sentir, minha netinha…Fazia tanto tempo…
— E esses pêlos na sua boca?
— Minha filha, foi uma mordida que eu dei num peito peludo e macio…
Tonta com as respostas, Chapeuzinho correu para a cozinha, pegou a bacia de gingas com tapiocas que estava em cima da pia e jogou tudo para o alto. Depois, saiu correndo para o cais aos prantos.
A Avó, enrolada numa toalha e penteando os cabelos, foi até a janela tentando entender o que se passava com a neta, sempre tão calma. O que sera que aconteceu?, pensou.
No cais, o Lobo Mau estava sentado na areia de frente para o rio, esperando que um amigo trouxesse a canoa que ele tinha abandonado do lado de Natal. Ofegante, Chapeuzinho Vermelho parou atrás dele e, aos gritos, disparou:
— Seu malvado, você não tem vergonha de ser tão cruel?
— Não, Chapeuzinho, respondeu o Lobo, entre enamorado e pensativo. “Nunca pensei que as gingas adormecidas fossem melhor do que as que estão chegando agora…E que eu estivesse com tanto apetite hoje…
Todas as tardes, depois desse sábado, os passageiros que sobem no Albacora ficam curiosos com a visão de uma mocinha que sempre está lá, debruçada sob as bordas da balsa, olhando perdidamente para as as canoas aconcoradas nas duas margens do rio. Alguns ficam com o sangue gelado só de imaginar que um dia ela possa se jogar dali em direção às águas fundas do Potengi.
*Extraído de Como Se Fossem Letras (Editora Jovens Escribas, 2013)