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70 anos de arte popular: do reconhecimento à transformação

Por Everardo Ramos

Alexandre Santos e Helena Rugai

Xico Santeiro Pescador, sem data. Madeira. 17,5 x 6,1 x 5 cm. Col. Museu Câmara Cascudo/UFRN.

Há exatos 70 anos, em junho de 1947, Augusto Rodrigues, artista e intelectual pernambucano, organizou na biblioteca Castro Alves, no Rio de Janeiro, a “Exposição de cerâmica popular pernambucana”, apresentando obras, entre outros, do grande Mestre Vitalino. Pela primeira vez no Brasil, segundo se sabe, esculturas de autodidatas eram reunidas e expostas a um público de admiradores, depois de ter sido produzida, durante séculos, por mãos anônimas e para um público tradicional (no caso de Vitalino e dos outros ceramistas pernambucanos, para frequentadores locais da feira de Caruaru, que compravam as obras como brinquedo para crianças). Essa exposição marca, portanto, o momento em que a criação vernacular, ganhando um novo estatuto, tornou-se uma nova categoria para a história da arte brasileira: a “arte popular”.

A mostra no Rio não foi, no entanto, um fato isolado, mas parte de um movimento maior de descoberta e valorização da criação popular por intelectuais de várias partes do país. Aqui no Rio Grande do Norte, é também na década de 1940 que outro escultor popular saiu do anonimato e ganhou fama como artista, da mesma forma e ao mesmo tempo que Mestre Vitalino. Trata-se de Joaquim Manoel de Oliveira, nosso Xico Santeiro, que passou a despertar a atenção dos intelectuais potiguares quando se mudou de Goianinha para Natal, em busca de maiores oportunidades de trabalho. Câmara Cascudo foi um desses intelectuais e o primeiro a revelar o escultor ao grande público, publicando um artigo no jornal A República, em 1950. A partir daí, o sucesso do Santeiro não cessou de aumentar, tornando-o figura conhecida nacional e internacionalmente.

O reconhecimento da produção popular enquanto “arte” provocaria grandes mudanças, não só na vida dos artistas, mas também em seu ofício e em sua obra. Até ser descoberto pelos intelectuais, Xico Santeiro esculpia apenas peças religiosas utilizadas como imagens de culto e devoção (crucifixos, santos, presépios), continuando uma tradição que remontava aos primórdios da colonização brasileira. Quando passou a receber encomendas de colecionadores, começou a representar, a pedido destes, ícones regionais (Padre Cícero, Antônio Conselheiro, Lampião e Maria Bonita, entre outros) e tipos ou cenas locais (rendeira, pescador, caçador, esmoler, retirantes, enterro de rede, casa de farinha, entre outros), criando obras que se integravam ao discurso regionalista e contribuíam para a afirmação de uma “identidade nordestina”. Aliás, isso também aconteceria com Vitalino e quase todos os artistas populares nordestinos, como podemos verificar ainda hoje na produção atual, onde os temas e tipos regionais são recorrentes e majoritários.

Também houve transformação em relação ao estilo das obras. As esculturas mais antigas de Xico Santeiro, de temática religiosa, eram de caráter naturalista: as formas imitavam o real, havia uma preocupação em representar o movimento e os detalhes dos personagens (anatômicos e de vestimenta), o naturalismo sendo reforçado pela pintura que recobria a peça e que distinguia as diferentes partes das figuras (pele, roupa, cabelo, etc.). Isso acontecia, certamente, porque o público tradicional valorizava esse tipo de arte, com um estilo que se aproximava do acadêmico. Já nas peças mais recentes, de temática regional e feita para colecionadores e turistas, percebe-se um cuidado menor em relação às formas, aos movimentos e aos detalhes das figuras, além do abandono total da pintura. Tais mudanças seriam o resultado do gosto do novo público, que considerava a estilização das formas e a rusticidade da madeira (sem a pintura naturalista) mais condizentes com uma “estética popular”. Vale lembrar que Mestre Vitalino também abandonou a pintura de suas peças, ao mesmo tempo e motivado pelas mesmas razões que Xico Santeiro.

Vemos, portanto, que a criação vernacular, tornando-se “arte popular”, teve que se adaptar a um novo contexto, incorporando funções, temas e formas que atendiam às expectativas daqueles que passaram a consumir as obras e que tinham motivações bastante diferentes das do público tradicional de antigamente. Mas foi graças a isso, ao novo mercado que surgiu com o novo público, que essa criação pôde fortalecer-se e perpetuar-se, apresentando-se ainda hoje como uma das categorias mais importantes da arte potiguar e brasileira.

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